Lucro das empresas deve ser próximo alvo

Ainda que a maioria das cidades que registraram protestos pela redução das tarifas de transporte público tenha atendido ao clamor das ruas, as manifestações futuras, além de focar a tarifa zero, poderão atacar os lucros dos empresários do setor.

A leitura é do cientista político do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper), Humberto Dantas.  

 

O cientista do Insper lembrou a atuação do prefeito de São Paulo, Fernando Haddad (PT), e do governador do estado, Geraldo Alckmin (PSDB), criticando a dupla por estar em viagem no momento em que os protestos atingiam alto grau de tensão. 

 

Dantas opina que desde muito tempo o brasileiro tem manifestado sua insatisfação sobre diversos temas pela internet e faz coro a outros especialistas e aos próprios manifestantes de que o reajuste nas tarifas de transporte acabou incorporando outras demandas, como a PEC 37 – que restringia o poder de investigação do Ministério Público e que teve a votação derrubada no Congresso Nacional -, obras da Copa do Mundo, financiamento da saúde e da educação, a saída do pastor Marco Feliciano (PSC-SP) da presidência da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, entre outros. 

 

Leia a íntegra da entrevista: 

 

DCI – A que se deve a grande mobilização popular que o País tem assistido nos últimos dias? O que se nota é que antes dessa eclosão, havia manifestações isoladas em torno de um ou outro tema. Houve uma junção dessas demandas? 

 

Humberto Dantas – Tivemos recentes manifestos, por exemplo, contra o presidente do Senado [Renan Calheiros-PMDB-AL], a gente teve coisas mesmo contra o [José] Sarney (PMDB-AP). A questão era o quanto que a gente conseguia converter essa lógica da internet para as ruas. E aí a gente pode dizer, em termos históricos, que tivemos no Brasil a maior capacidade de conversão das pautas da Web em movimentos que foram às ruas. 

 

 

DCI – Diante dessas manifestações, a internet se consolida como uma ferramenta de mobilização? 

 

HD – Se a gente olhar para o mundo, vamos ver que não existe ineditismo na utilização das redes sociais para a organização de manifestos. Então as redes sociais podem ser vistas como um mecanismo de representar uma tendência. 

 

 

DCI – É possível apontar qual foi a causa dessa mobilização no cenário brasileiro? Essa mobilização traz consigo fatores externos? 

 

HD – Você nunca sabe o que motiva as pessoas. Não existe uma pauta única. Não existiam 230 mil pessoas contra o aumento de tarifa. Eu tenho a mais absoluta certeza do que estou dizendo. Existiam pessoas contra a tarifa, existiam pessoas indo às ruas contra a forma como a polícia reprimiu. Pessoas foram às ruas em diferentes cidades com diferentes temáticas contra a PEC 37, contra Belo Monte, bebês anencéfalos, contra os mais diferentes aspectos. Em Belém, no Pará, as pessoas foram para as ruas contra Belo Monte. Em Brasília, as pessoas foram em parte contra a PEC 37. Em alguns lugares as pessoas ainda protestam contra o Renan Calheiros na presidência do Senado. Há uma diversidade de pautas que caracterizam esse tipo de manifestação. 

 

 

DCI – Ainda que os movimentos sociais tenham conseguido, em grande parte, a redução das tarifas do transporte público na maior parte das cidades, uma indagação que fica é por que jamais se toca no caso dos lucros dos empresários do setor e que a redução tenha que afetar investimentos? 

 

HD – Desonerar significa que eu vou investir menos na saúde para cobrir transporte. Significa que eu vou investir menos em educação para cobrir transporte. E o empresário de ônibus? Vai continuar ganhando o mesmo? Isso é que a sociedade está gritando nas ruas. O empresário vai continuar recebendo a mesma grana da tarifa e vai desonerar imposto? A sociedade não vai concordar com isso. Alguém tem que pagar essa conta. Prefeito não fabrica dinheiro em máquina. 

 

 

DCI – Pressionados, o prefeito de São Paulo, Fernando Haddad (PT), e o governador do estado, Geraldo Alckmin (PSDB), relutaram, mas acabaram baixando as tarifas, como exigiam os manifestantes. Como é que o senhor avalia a postura desses dois atores? 

 

HD – Tão importante quanto estabelecer canais de conversa com aquilo que está se manifestando em cima do leite derramado, é ter uma capacidade mais consistente de dialogar com a sociedade no que diz respeito ao plano futuro. Enquanto parcela da sociedade ia para as ruas se manifestar contra a Copa do Mundo e os estádios de futebol, o prefeito da maior cidade do País e o governador do maior estado do País estavam em Paris negociando a chegada de um megaevento para São Paulo. Nós queremos isso? Nós desejamos isso? Qual a transparência? Qual a clareza? Qual o impacto? Qual o custo, qual o preço disto? 

 

 

DCI – Essa crise remete a um outro ponto que é justamente a dificuldade dos governos em se comunicar com a sociedade. Esses canais precisam ser criados/aprimorados na sua visão? 

 

HD – Os governos precisam estabelecer canais de contato com a sociedade em todas as esferas e planos e, tão importante quanto estabelecer canais de conversa com aquilo que está se manifestando, é ter uma capacidade mais consistente de dialogar com a sociedade sobre o que diz respeito ao plano futuro. 

 

 

DCI – É possível fazer um perfil do público que participou? 

 

HD – É um público antenado, que está pelo menos dentro das redes [sociais]. É um público, em boa parte dos casos, jovem, que em boa parte nasceu com um carimbo na testa de que ele é ativista de sofá. Acho esse termo absurdo. Não gosto de as pessoas desqualificarem as pessoas que protestam pela internet. Eu acho que é uma forma de protestar. E também tem aquele aspecto de que o brasileiro não nasceu para protestar, o que também não é verdade. Nós temos assistido muitas manifestações, sobretudo, em torno de crimes assustadores, que levantam a opinião pública. No dia seguinte já tem pessoa na rua marchando de branco, soltando pombas, com faixa. Eu não posso fechar os olhos para isso. E esse público, sobretudo, tem visto outras pessoas no mundo se manifestando. O mundo está se manifestando e a gente e aí? Quando é que a gente vai para a rua? Contra o quê, de que forma? 

 

 

DCI – É possível afirmar que o endurecimento da repressão ocorrida em São Paulo estimulou a ida de 200 mil pessoas para as ruas? 

 

 

HD – Eu acho que em parte, a forma como as manifestações foram tratadas estimularam mais pessoas a participar. Ah, então eu não posso? É assim e a polícia me bate? É assim que eu sou tratado? Então tá bom: agora eu também vou. Eu vi muita gente nas ruas inspirada por coisas do tipo agora nem me manifestar eu posso? Reconhecemos e temos que reconhecer que existem exemplos de pessoas que passaram dos limites, mas eu também vi muita gente pichando e apanhando de manifestantes. Virando lixo e apanhando de manifestantes. Tem coisas interessantes. Pessoas que dizem a gente veio aqui fazer a coisa do jeito certo e aproveitar o que a Constituição nos dá direito. 

 

DCI – Já se disse que os movimentos de rua não têm cara. E as pautas? Elas vêm sendo atendidas de alguma forma. O senhor acha que dada a mobilização do Executivo e do Legislativo em Brasília, essas pautas podem se esgotar ou outras surgirão a seguir? 

 

HD – Talvez exista o arrefecimento de uma ou outra pauta, mas fica a impressão de que a sociedade se potencializa no que diz respeito à sua capacidade de se indignar sobre diversos temas. E aí corre-se o risco de assistirmos altas persistentes, que se acumulam. Hoje é a tarifa, amanhã é a Copa, a corrupção. Pode ser que a gente tenha aí um número expressivo de pautas. 

 

 

DCI – Depois dessas manifestações, o senhor acha que o comportamento ou a falta de transparência da classe política para com a sociedade terá um tratamento diferente do que se via antes? 

 

HD – Isso é que é legal na democracia. No regime autoritário você só lida com trouxas. No regime democrático você tem o risco de não lidar com otário. Você corre o risco de lidar com gente que pensa e eu espero que estejamos lidando com gente que pensa. 

 

 

Fonte: DCI